Que ministros do Supremo Tribunal Federal se manifestem constantemente fora dos autos, em palestras, entrevistas e diversas outras ocasiões, é algo que já não espanta ninguém no Brasil de hoje, mesmo que essa loquacidade bata de frente com todas as regras que regem a magistratura. Que falem inclusive sobre processos que estão julgando ou assuntos que possam vir a julgar também não surpreende. Então, foi com total naturalidade, sintomática da anestesia institucional que vivemos, que o país tomou conhecimento da entrevista que o ministro Alexandre de Moraes concedeu ao jornal O Globo sobre os acontecimentos do 8 de janeiro de 2023 – os mesmos cujos participantes cabe a ele julgar, no papel especial de relator dos processos. O que ganhou as manchetes foi o teor de uma das afirmações do ministro.
Segundo Moraes, havia não apenas um, mas três planos para livrar-se dele naquele domingo, envolvendo inclusive a participação das Forças Armadas. “O primeiro previa que as Forças Especiais (do Exército) me prenderiam em um domingo e me levariam para Goiânia. No segundo, se livrariam do corpo no meio do caminho para Goiânia. Aí, não seria propriamente uma prisão, mas um homicídio. E o terceiro, de uns mais exaltados, defendia que, após o golpe, eu deveria ser preso e enforcado na Praça dos Três Poderes”, afirmou o ministro do STF ao jornal carioca. Moraes ainda acrescentou que está sendo investigada a participação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no planejamento da suposta prisão – haja inteligência por parte dos supostos planejadores, aliás, já que em 8 de janeiro o ministro nem estava no Brasil, pois havia viajado a Paris com a família.
Até o momento, não há um único elemento em toda essa história indicando que ela possa ser levada a sério
As provas dos planos? Moraes não apresentou nenhuma evidência, como era de se esperar. Seria mesmo algo elaborado, com funções definidas e estratégias para sua execução? Ou estamos falando apenas de algum manifestante tresloucado que lançou ideias incendiárias em um ou outro grupo de WhatsApp? Não sabemos. A rigor, não sabemos nem mesmo se chegou a haver a intenção de atentar contra a integridade física do ministro, muito menos da forma por ele descrita. Moraes espera que o país simplesmente acredite em suas palavras a respeito de uma história tão mirabolante sem nenhum tipo de questionamento, e quem levantar dúvidas sobre suas palavras ou perguntar demais – por que nada disso foi mencionado nos vários votos pela condenação dos réus do 8 de janeiro já proferidos? Se as ameaças eram tão graves, por que o ministro não reforçou sua segurança? – ainda pode acabar sendo considerado “inimigo da democracia”…
A pretensão de que o Brasil aceite as denúncias de Moraes sem comprovação nenhuma é ainda mais incrível tendo em mente um episódio recente, ocorrido meses atrás no aeroporto internacional de Roma. O que começou com uma história de “hostilização” e “agressão”, com direito a uma absurda busca e apreensão na casa dos supostos agressores, terminou como algo que nem a Polícia Federal foi capaz de descrever com clareza, já que seu relatório só consegue fazer prosperar a versão de Moraes à custa de muitas ilações e suposições. Não é só a falta de evidências do suposto plano que nos permite o direito de não acreditar cegamente no ministro; o histórico de Moraes a esse respeito não o ajuda em nada.
O que temos, portanto, é um magistrado falando fora dos autos, sobre um processo que ele mesmo está julgando, relativo a acontecimentos nos quais, segundo seu próprio relato (carente de comprovação), ele seria vítima de uma forma bastante especial, o que o tornaria impedido de julgar em qualquer país que levasse a sério as regras de processo penal, como bem lembrou o ex-deputado federal Deltan Dallagnol. Até o momento, não há um único elemento em toda essa história indicando que ela possa ser levada a sério. E o fato de tudo estar tão errado assim e ao mesmo tempo tão normalizado assim apenas nos mostra como o Supremo – e Moraes em específico – conseguiu se impor como superpoder capaz de ignorar impunemente a Constituição, as leis, o decoro que deveria pautar a ação dos magistrados, fazendo das próprias palavras o único critério para definir o legal, o justo e o verdadeiro.